Profissionais da Engenharia Química esclarecem sobre a crise do metanol

Um solvente de uso industrial e como combustível, o metanol, está sendo responsável por intoxicações que teriam causado mortes e danos à saúde no maior estado do país nas últimas semanas, em decorrência do consumo de bebidas destiladas. Em 25 dias, foram registrados pelo menos 25 casos de intoxicação em São Paulo, com cinco vítimas fatais. Há também possíveis casos em Pernambuco. Nesta quinta-feira (2/10), o rapper Hungria foi confirmado como o primeiro caso de intoxicação em Brasília. Uma dor vivenciada também na década de 1990, quando 27 pessoas foram intoxicadas e cinco morreram no ABCD Paulista e, na Bahia, 62 pessoas morreram e aproximadamente 400 foram intoxicadas, também em decorrência da adulteração de bebidas com esse mesmo agente químico.  

“O controle do processo de fabricação das bebidas alcoólicas no país é bastante rigoroso nas industrias devidamente registradas nos Creas e que possuem profissionais responsáveis. Há fortes indícios de que nesses casos houve uma adulteração, posterior à produção”, considera a coordenadora da câmara de Engenharia Química do Crea-BA, eng. alim. Márcia Ângela Nori. Professora do curso de Engenharia de Alimentos da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), ela afirma que o Brasil obedece a normatizações brasileiras e internacionais relacionadas aos limites mínimos de ingestão diária de diversas substâncias químicas presentes nos alimentos, como é o caso do metanol. Nesse sentido, a Coordenadoria de Câmara Especializada de Engenharia Química do Crea-SP emitiu nota técnica nesta quinta-feira (2/10).

Professora eng. alim. Márcia Ângela Nori

Professora eng. alim. Márcia Ângela Nori

Um pouco de Química Orgânica
Todas as fórmulas derivadas do álcool têm terminações com o sufixo “_ol”. Essa  convenção da química orgânica serve para nomear moléculas que contêm um grupo hidroxila (–OH). Entre os agentes químicos que possuem hidroxila, temos os álcoois (OH ligado a carbono saturado), fenóis (OH ligado a anel aromático) e ácidos carboxílicos (onde a hidroxila faz parte do grupo carboxila, C=O). Outras funções que também contêm o grupo hidroxila são: os enóis (com  o grupo hidroxila ligado a um átomo de carbono de uma ligação dupla – insaturada), bases (compostos inorgânicos como o hidróxido de magnésio (Mg(OH)₂) contêm hidroxilas ligadas a íons metálicos, formando o grupo hidróxido) e as moléculas, como a celulose (polissacarídeo, presente na madeira, que contém inúmeros grupos hidroxila que interagem com a água, causando seu inchaço) e o colesterol (tipo de álcool de importância biológica). 


Assim, além do álcool da bebida, o etílico, temos o álcool anidro (etanol), usado como combustível.  Ambos são produzidos pela fermentação da cana de açúcar (embora, nos Estados Unidos, haja uma produção de etanol por meio do milho, assim como do álcool etílico). “O processo de fabricação da cachaça é similar ao da produção do álcool de combustível. Uma das diferenças é que o etanol tem menos de 1% de água”, ressalta.
 

Processo de fabricação de bebidas destiladas
Segundo a engenheira, no processo de destilação de bebidas alcoólicas provenientes da fermentação alcoólica — como exemplo a destilação do mosto fermentado do caldo de cana-de-açúcar utilizado na produção da cachaça — a separação das frações ocorre em função dos distintos pontos de ebulição dos compostos voláteis presentes na mistura. A fração inicial, denominada “cabeça”, contém principalmente compostos mais voláteis, como o metanol (ponto de ebulição: 64,7 ºC), aldeídos e éteres, sendo considerada imprópria para consumo e devendo ser descartada. A fração intermediária, chamada “coração”, corresponde a aproximadamente 80 a 85% do volume, é composta majoritariamente por etanol (ponto de ebulição: 78,3 ºC) e por pequenas concentrações de congêneres responsáveis pelas características sensoriais da bebida, representando a porção tecnicamente adequada para o consumo humano. Já a fração final, denominada “cauda”, concentra compostos de maior peso molecular, como os álcoois superiores (ex.: propanol, butanol, isoamílico; pontos de ebulição entre 82 ºC e 138 ºC), além de ácidos graxos voláteis e ésteres, que podem conferir sabores e odores indesejáveis, devendo também ser controlada ou descartada.


Coordenador da Câmara Especializada de Engenharia Química do Crea-SP, o engenheiro de alimentos Paulo Eduardo Tavares reforça a nota lançada pelo Regional para reforçar a atuação conjunta consensual de profissionais da modalidade Engenharia Química e de químicos, durante o processo de fabricação de bebidas. Ele assevera que “o problema não está no processo da fermentação. Isso está no processo que foi colocado depois. O químico faz essa análise do residual químico da bebida, garantindo os limites corretos.  Nós estamos ligados ao processo de produção, não ao envase, porque tudo o que envolve um controle de qualidade é de responsabilidade do químico ou de profissional da modalidade Engenharia Química com registro no CRQ (engenheiro químico, engenheiro de alimentos e engenheiro bioquímico)”, diz.

Coordenador da Coordenadoria Regional de Engenharia Química do Crea-SP, eng. alim. Paulo Eduardo Tavares

Coordenador da Coordenadoria Regional de Engenharia Química do Crea-SP, eng. alim. Paulo Eduardo Tavares

Normatização
De acordo com a Instrução Normativa MAPA nº 13, de 29 de junho de 2005, que aprova o Regulamento Técnico para Fixação dos Padrões de Identidade e Qualidade da Cachaça, e o Decreto nº 6.871, de 4 de junho de 2009, que regulamenta a Lei nº 8.918/1994 sobre bebidas, o teor máximo de metanol permitido é de 20 mg/100 ml de álcool anidro a 20 ºC (equivalente a aproximadamente 0,25 ml/100 ml de destilado, conforme a graduação alcoólica). O controle dessas frações é realizado essencialmente pelo monitoramento da temperatura de destilação, assegurando a obtenção de uma bebida alcoólica segura e conforme a legislação vigente.
Embora o Decreto nº 6.871/2009 e as normas brasileiras não estabeleçam um limite legal específico de metanol para bebidas como whisky ou vodca, há controle obrigatório do teor de metanol dentro das boas práticas de fabricação e padrões internacionais de segurança alimentar.


Como é feito o controle:

1.    Durante a destilação:
•    O metanol é naturalmente separado nas frações iniciais da destilação (fração “cabeça”), devido ao seu ponto de ebulição mais baixo (64,7 °C) em relação ao etanol (78,3 °C).
•    As frações intermediárias (“coração”) e finais (“cauda”) contêm quantidades mínimas de metanol, que devem estar dentro de limites seguros.

2.    Boas práticas de fabricação (BPF / HACCP):

•    As indústrias de whisky, vodka e outras bebidas destiladas devem adotar BPF e sistemas de análise de risco para garantir que os níveis de metanol na bebida não representem risco à saúde.

•    Normalmente, os laboratórios realizam análises periódicas por cromatografia gasosa (GC) para quantificar metanol e outros congêneres.

3.    Referência internacional:

•    Limite sugerido de metanol: <0,1% v/v na bebida (≈1000 mg/L), considerado seguro para consumo humano.


A professora ressalta que a legislação brasileira, através do Código Penal, tipifica como crime a atividade de adulteração de um fármaco, no entanto, tipifica como infração a adulteração de alimentos, mesmo que intencionalmente modificado, como parecem ser os casos paulistas. “A penalidade para adulteração de fármacos resulta em 10 a 15 anos de reclusão, enquanto para alimentos adulterados o tempo é quatro a oito anos, no entanto, o resultado da ingestão do produto adulterado foi a morte.  São vidas perdidas, devido a uma intervenção dessas. Devemos rever a nossa legislação”, diz.

Engenharia de Alimentos
Embora ainda pouco difundida, a Engenharia de Alimentos é uma área relativamente recente no Brasil, surgida no final da década de 1960, voltada para a formação de profissionais capazes de garantir a qualidade e a segurança nos processos de fabricação de alimentos. A grade curricular também inclui disciplinas como Toxicologia de Alimentos, que capacita os engenheiros a avaliarem riscos químicos, estabelecer limites seguros para substâncias presentes nos alimentos e assegurar que os produtos sejam seguros para o consumo humano.
 

Fluxograma

Esquema elaborado pelo eng. quim. Camilo Morejon


“Mesmo na fabricação do pão ocorre fermentação alcoólica, durante a qual leveduras convertem açúcares em etanol e dióxido de carbono. O etanol residual, em pequenas concentrações (geralmente <0,5% do peso final da massa), evapora integralmente durante o cozimento devido às altas temperaturas do forno (acima de 180 ºC), garantindo que o produto final seja seguro para consumo. O café, rico em cafeína e outros alcaloides, pode apresentar efeitos tóxicos se ingerido em excesso, especialmente em crianças e indivíduos sensíveis, destacando a importância do controle da quantidade e do processo de torra, que altera a concentração de compostos bioativos”, completa Marcia.

A seguir, o engenheiro químico Camilo Freddy Mendoza Morejon, conselheiro do Crea-PR e professor associado da Unioeste e de cursos de pós-graduação em Engenharia Química, Ciências Ambientais e em Rede Nacional em Propriedade Industrial e Transferência de Tecnologia para a Inovação (PROFNIT), descreve alguns aspectos sobre os desafios da Engenharia para o enfrentamento da crise do metanol no país.
Confea - Quais são os principais usos industriais do metanol no Brasil?

Eng. quim. Camilo Morejon - O metanol é amplamente utilizado como uma matéria-prima industrial, principalmente para a produção de formaldeído, resinas, plásticos, solventes e no processo de fabricação de biodiesel. 

Confea - Quais são os principais cuidados que devemos ter em a manipulação do metanol?
 

Eng. quim. Camilo Morejon

Eng. quim. prof. Camilo Morejon

Eng. quim. Camilo Morejon - O metanol é uma substância altamente tóxica e os cuidados básicos envolvem: Armazenamento adequado, em locais ventilados e sinalizados; Uso de equipamentos de proteção individual (luvas, óculos, máscaras); Controle rígido de acesso para evitar desvios; Seguir normas internacionais de segurança química, como as orientações da OSHA e da ONU.

Confea - Qual seria o seu posicionamento enquanto profissional da Engenharia Química sobre essa problemática enfrentada atualmente no país? E enquanto ator do sistema profissional, como conselheiro regional?
 

Eng. quim. Camilo Morejon - O assunto é complexo e passa por questões técnicas, econômicas, jurídicas, legais, de saúde, segurança, aspectos sociais, culturais e políticos. De modo geral teria que ser intensificada a fiscalização, implementada mecanismos de rastreabilidade dos produtos e uma maior conscientização da sociedade sobre os riscos.   No âmbito do Confea/Crea, defendo que os Conselhos Regionais e o Confea devam intensificar a orientação técnica à sociedade sobre os riscos e também intensificar a Fiscalização preventiva, reforçando a importância da presença de engenheiros químicos na cadeia produtiva de bebidas e insumos industriais.


Confea - Um evento desses, com a amplitude que está sendo registrada, pelo menos, em São Paulo e em Pernambuco, poderia ser atribuído a alguma falha de procedimentos?

Eng. quim. Camilo Morejon - Neste momento, é fundamental que se realize uma investigação criteriosa para apurar as causas.
 

Confea - Quais seriam as suas recomendações para evitar esses episódios? Há características perceptíveis?

Eng. quim. Camilo Morejon - Reforçar a fiscalização em toda a cadeia de bebidas; Ampliar campanhas de informação para consumidores e comerciantes; e estimular o uso de tecnologias de rastreabilidade. Quanto à percepção, infelizmente o metanol não apresenta características sensoriais claras (cheiro e sabor semelhantes ao etanol), o que torna impossível identificá-lo a olho nu. A única forma segura é por análise laboratorial.

Confea - Uma das formas de garantia para o consumidor que acabou sendo abandonada em 2017 era o selo de segurança holográfico, com reconhecimento internacional, disponibilizado pela Casa da Moeda. O senhor considera que retomar essa alternativa seria válido, apesar do fracionamento de bebidas cada vez mais comum no país?
 

Eng. quim. Camilo Morejon - Sim, considero válido. O selo holográfico da Casa da Moeda é uma ferramenta de controle reconhecida mundialmente e pode dificultar a adulteração em larga escala. Ainda que o fracionamento de bebidas seja um desafio adicional, o selo funcionaria como uma barreira extra de segurança e rastreabilidade, fortalecendo a confiança do consumidor.

Fonte: Confea