A arborização urbana além da estética, frente ao aquecimento global

O engenheiro florestal Rafael de Paiva Salomão divide com o botânico autodidata Nélson Rosa (in memoriam) uma das premiações do 11º Prêmio da Associação Brasileira de Editoras Universitárias (ABEU). Publicada pela Editora de Livros do Museu Paraense Emílio Goeldi, a obra “Guia de Seleção de Árvores Ornamentais: paisagismo urbano para a Amazônia” se destacou na categoria Ciências Naturais e Matemáticas, que também reconheceu o trabalho dos organizadores, biólogo Fábio Frattini Marchetti e eng. agr. Paulo Eduardo Moruzzi Marques, de “Multifuncionalidade da Agricultura Familiar: a sustentabilidade de sistemas agroalimentares”, da Editora da Universidade Federal de São Paulo (Edusp), e a doutora em Ciências da Computação Ticianne Darin, autora de “Manual da Autonomia Digital: bem-estar na experiência do usuário”, da Editora da Universidade Federal do Ceará (UFC). As obras foram, respectivamente, eleitas 3º, 2º e 1º lugares.

Doutor em Ciências Agrárias, pesquisador aposentado do Museu Goeldi e professor no programa de pós-graduação em Ciências Biológicas, vinculado à Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA) e ao MPEG, o eng. ftal. Rafael Salomão atuou no Horto Municipal da capital paraense.

A falta de variedade de espécies amazônicas nas atividades de arborização pública o motivou a elaborar o Guia, relacionando 14 atributos biológicos, paisagísticos e culturais para nortear a avaliação das espécies ornamentais potenciais. São eles: altura total da árvore adulta; forma da copa; floração; folhagem; valor legal/cultural; uso do fruto; incremento anual da altura; fitossanidade; tamanho da folha/folíolo; caducifolia; intensidade da frutificação; peso do fruto; sistema radicular e longevidade. Na obra, Rafael destaca que “cabe ao planejador julgar quais atributos são mais importantes às espécies selecionadas, de acordo com a finalidade do seu projeto”. A pesquisa é ricamente ilustrada com fotografias e tabelas. Confira a obra.

Com diagnósticos nas cidades de Belém, Altamira, Marabá, Santarém e Paragominas, todas no Pará, foram ranqueadas 164 espécies, das quais foram relacionadas 105 espécies arbóreas com potencial ornamental para o uso urbano e que ocorrem naturalmente na Amazônia. Seu parceiro de pesquisa, Nélson Rosa, faleceu em agosto de 2024, deixando um legado de 47 anos de pesquisas sobre a Amazônia, 18 deles como auxiliar técnico do Departamento de Botânica do Museu Goeldi. A seguir, em entrevista por e-mail, Rafael Salomão apresenta outros aspectos em torno da pesquisa.

Confea — A avaliação se baseia em uma “matriz de seleção de espécies ornamentais para uso na arborização urbana”, com 14 características bioecológicas, em torno de 164 espécies analisadas, das quais 105 são originárias da Amazônia. Como se deu a definição e a parametrização desses atributos e como se deu esse registro, em cinco cidades paraenses?

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão —  A matriz de seleção de espécies ornamentais para uso na arborização urbana foi desenvolvida com base em 14 atributos bioecológicos, dendrológicos, paisagísticos, culturais e legais, cuidadosamente definidos para permitir uma avaliação técnica padronizada das espécies arbóreas com potencial ornamental para o uso urbano. A matriz de seleção foi fundamentada em critérios técnicos robustos e aplicáveis ao contexto nacional e, sobretudo, amazônico. O diagnóstico realizado em cinco cidades paraenses reforçou a urgência da adoção de estratégias mais técnicas e biodiversas na escolha de espécies arbóreas, utilizando o guia como referência para uma arborização urbana mais racional, sustentável e adaptada à realidade local.

Confea — Quais são as principais conclusões, em relação ao paisagismo urbano para a Amazônia, tanto em relação às dificuldades de conservação e manutenção nas vias públicas, como em relação às necessidades para as áreas verdes?

 

Capa do livro premiado pela Associação das Editoras Universitárias

 


Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — Relativamente aos desafios e dificuldades da arborização em vias públicas tem-se: (1) falta de planejamento técnico, (2) manutenção deficiente, (3) redução da diversidade e (4) desconhecimento da flora regional.  Já em relação às necessidades e diretrizes para áreas verdes (praças, parques, reservas urbanas) deve-se contemplar: (1) o conforto térmico e funcionalidade (principal função esperada da arborização em áreas verdes tropicais, seguido pelos aspectos paisagístico, ecológico e cultural), (2) o planejamento ecológico, (3) a valorização de atributos estéticos e culturais (espécies com valor cultural e/ou legal, como a castanheira-do-brasil e o pau-brasil, devem ser incorporadas com cuidado ao planejamento) e (4) preservação da identidade local - o uso de espécies nativas amazônicas contribui para a conservação da biodiversidade, o fortalecimento da identidade ecológica regional e a educação ambiental da população. O paisagismo urbano na Amazônia exige uma abordagem mais criteriosa, técnica e ecologicamente sensível. A principal conclusão do guia é que a região possui um vasto patrimônio florístico subutilizado, que poderia ser empregado para qualificar a arborização urbana tanto em vias públicas quanto em áreas verdes, promovendo maior resiliência urbana ao clima, redução de custos de manutenção, melhoria da qualidade de vida da população, valorização da cultura e da biodiversidade amazônica. A adoção da matriz de seleção proposta no guia representa um instrumento eficaz para transformar práticas empíricas e fragmentadas em políticas públicas sustentáveis e estruturadas de arborização urbana, sobretudo na Amazônia.

Confea — As tradicionais mangueiras de Belém são analisadas na obra, mesmo sendo uma espécie exótica, como a grande maioria das árvores ornamentais. Apesar de aspectos negativos fitossanitários e do peso e tamanho da fruta, o conforto térmico é o principal fator para indicá-la para a arborização urbana?

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — Sim, o conforto térmico proporcionado pelas mangueiras, gerado por suas copas densas e amplas, é o fator que justifica sua presença histórica e contínua na arborização urbana de Belém, aliado à forte identidade cultural; ambos são os principais motivos que justificam sua indicação na arborização urbana, mesmo diante de desvantagens técnicas relevantes. O guia, contudo, propõe que essas justificativas sejam reavaliadas à luz de critérios técnicos mais amplos, promovendo a substituição gradual por espécies nativas amazônicas igualmente eficazes e mais sustentáveis do ponto de vista ambiental e de manejo urbano. Espécies amazônicas nativas, como o Pau-pretinho (Cenostigma tocantinum) e várias espécies de ipês, entre outras, com copa densa e ampla, são boas alternativas ao uso das mangueiras.

Confea — O senhor acredita que a obra ofereça condições para suprir a falta de variedade de espécies amazônicas nas atividades de arborização pública do Pará?

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — Sim, a obra oferece subsídios práticos e conceituais para superar a escassez de espécies amazônicas utilizadas na arborização urbana na Amazônia, especialmente no Pará, ao mesmo tempo em que propõe uma mudança de paradigma: sair do uso restrito e repetitivo de espécies exóticas e consagradas, e ampliar o repertório técnico com base na flora nativa amazônica. O guia oferece condições técnicas e práticas para suprir a falta de variedade de espécies amazônicas nas atividades de arborização pública, sobretudo nos estados amazônicos — uma lacuna historicamente diagnosticada no planejamento urbano da região. A obra oferece condições objetivas e aplicáveis para ampliar significativamente a variedade de espécies amazônicas utilizadas nas atividades de arborização pública. Ela fornece subsídios científicos, técnicos e operacionais para transformar a forma como as cidades amazônicas escolhem e manejam suas árvores urbanas — promovendo biodiversidade, resiliência climática e identidade regional.

Eng. ftal. Rafael Salomão: "11º Prêmio ABEU é de grande relevância científica, institucional e simbólica para os autores, para o Museu Paraense Emílio Goeldi (instituição editorial) e para a Amazônia como um todo"

 


Confea — Qual a importância da devida arborização urbana, sobretudo diante das condicionantes da Amazônia e ainda em um contexto de aquecimento global, logo após a COP 30, em Belém? O senhor acredita que a “palmeirização”, vista em diversas partes do país, poderá ser reduzida? Já houve alguma constatação sobre danos causados pelo aquecimento global às espécies, inclusive as ornamentais?

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — A arborização urbana adequada é cada vez mais essencial no contexto amazônico, especialmente frente à intensificação das mudanças climáticas e do aquecimento global — temas centrais da COP 30, realizada em Belém. A obra oferece não apenas soluções práticas, mas também um reposicionamento estratégico da arborização urbana como ferramenta de mitigação e adaptação climática para cidades amazônicas. Em um cenário pós-COP 30, onde se espera que Belém e demais cidades amazônicas sirvam de exemplo para o mundo, a arborização urbana deve deixar de ser vista apenas como elemento estético ou decorativo. Ela deve se consolidar como infraestrutura verde essencial para a sobrevivência das populações urbanas frente ao aquecimento global. A obra oferece ferramentas, critérios técnicos e alternativas regionais para substituir a lógica da “palmeirização” por uma arborização funcional, diversificada, resiliente e amazônida. Existem inúmeros trabalhos publicados demonstrando que várias espécies arbóreas amazônicas sofrerão sérias restrições populacionais em consequência das mudanças climáticas, assim como outras espécies que se beneficiarão dessas mudanças como p.ex. a castanheira-do-brasil (Bertholletia excelsa). Relativamente às espécies arbóreas ornamentais não se tem conhecimento reportado ainda.

Confea — Fale sobre a parceria de um engenheiro agrônomo florestal com o parabotânico Nélson Rosa e, também, a importância da literatura e do próprio Museu Emílio Goeldi para a publicação.

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — A publicação deste guia representa o resultado de uma sólida parceria entre mim e o saudoso parceiro parabotânico Nélson Rosa, ambos com larga trajetória no estudo da flora amazônica. Essa colaboração reúne, de forma complementar, o rigor técnico-científico da engenharia florestal com o conhecimento empírico profundo de campo que caracteriza a atuação dos parabotânicos — figuras-chave na botânica aplicada à realidade amazônica. A parceria entre os dois autores foi fundamental para a seleção criteriosa das 164 espécies analisadas, conjugando conhecimento técnico, experiência prática e sensibilidade paisagística. O Nélson contribuiu com observações detalhadas de campo, usos tradicionais e comportamento das espécies em ambientes florestais e urbanos amazônicos, enquanto eu estruturei a matriz técnica de seleção e os critérios bioecológicos e legais. O Museu Emílio Goeldi teve papel crucial, tanto científico, quanto institucional na concretização da obra, alicerçado em três pilares: (1) apoio institucional - o guia é produto de um projeto financiado por meio de convênio entre o MPEG, o Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (MCTI), a Equatorial Energia e a Fundação Fidesa; (2) base científica - a instituição forneceu o suporte técnico, bibliográfico e estrutural necessário à produção do guia, além de décadas de acervo florístico acumulado em seu herbário e bases de dados e (3) histórico de excelência como um dos centros de referência em botânica e ecologia tropical do Brasil, o Museu Goeldi confere à obra uma chancela de qualidade científica e relevância nacional e internacional. A colaboração entre os autores e o respaldo institucional do Museu Goeldi deram origem a uma obra de elevado valor técnico, científico e cultural, que une tradição e inovação. O guia representa não apenas um avanço metodológico na arborização urbana, mas também, um tributo ao conhecimento amazônico, ao fazer científico e à missão pública de instituições como o MPEG. Adicionalmente, há de se considerar também a importância estratégica das parcerias público-privadas que, neste caso, teve a antiga Rede Celpa, hoje Equatorial Energia, como financiadora direta do projeto que deu origem ao guia. A Equatorial Energia conduz importantes ações de responsabilidade socioambiental em todo o Pará, e a publicação do guia permite ampliar o alcance das recomendações técnicas já consolidadas, fortalecendo as políticas de arborização urbana compatíveis com as redes elétricas, contribuindo para um planejamento ambiental mais seguro, eficiente e alinhado às premissas de sustentabilidade da empresa.

Confea — O livro aponta a falta de regulamentação e de planejamento, sem o devido amparo técnico e sem o uso de espécies nativas “que ressaltem a identidade do bioma no qual a cidade está localizada”. Muito se critica a arborização de Brasília, por conta do uso de espécies não nativas do cerrado. Essa realidade é comum à maioria das cidades brasileiras? O livro pode contribuir para modificar cenários de arborização urbana como esse em todo o país? 

A arborização sem identidade biogeográfica, como em Brasília, apesar de planejada, utilizou amplamente espécies exóticas em detrimento da vegetação nativa do Cerrado, o que, entre outras, compromete a adaptação ao solo e ao clima locais, a biodiversidade urbana e o reconhecimento e a valorização do bioma regional.


Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão — A crítica apontada no livro — sobre a ausência de regulamentação técnica e o uso recorrente de espécies não nativas — não se limita só à Amazônia ou ao Pará. Essa é, na verdade, uma realidade generalizada na maior parte das cidades brasileiras, que sofrem com déficits históricos de planejamento urbano, ausência de políticas ambientais locais e escolhas paisagísticas arbitrárias, muitas vezes baseadas em critérios estéticos superficiais, modismos ou facilidades operacionais. A arborização sem identidade biogeográfica, como em Brasília, apesar de planejada, utilizou amplamente espécies exóticas em detrimento da vegetação nativa do Cerrado, o que, entre outras, compromete a adaptação ao solo e ao clima locais, a biodiversidade urbana e o reconhecimento e a valorização do bioma regional. Essa desconexão entre arborização e identidade ecológica local ocorre também na Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga e Pampas, onde as espécies nativas muitas vezes são ignoradas ou desconhecidas pelos técnicos municipais e empresas terceirizadas de paisagismo. Além disso, a falta de legislação específica, aliada à carência de capacitação técnica nas prefeituras, leva à repetição de erros históricos: uso excessivo de poucas espécies (monoculturas urbanas), escolha de espécies inadequadas para fiação elétrica ou calçadas estreitas, e manutenção ineficaz. O guia não apenas denuncia uma prática recorrente no Brasil — a desvalorização das espécies nativas nos espaços urbanos — como também propõe uma metodologia replicável para reverter esse cenário, inclusive em regiões com histórico de arborização desconectada da realidade ecológica local, como é o caso emblemático de Brasília. Assim, a obra pode sim inspirar e orientar uma nova geração de políticas de arborização urbana em todo o território nacional, contribuindo para uma arborização mais funcional, biodiversa e culturalmente enraizada.

A obra pode sim inspirar e orientar uma nova geração de políticas de arborização urbana em todo o território nacional, contribuindo para uma arborização mais funcional, biodiversa e culturalmente enraizada

Confea — Qual a importância desse reconhecimento pelas editoras universitárias?

Eng. ftal. Rafael de Paiva Salomão —  O Prêmio ABEU, promovido anualmente pela Associação Brasileira das Editoras Universitárias, é um dos mais importantes selos de qualidade editorial e impacto acadêmico no Brasil. A premiação representa o reconhecimento, em âmbito nacional, da qualidade técnica, científica e editorial da obra, posicionando-a entre as mais relevantes do país em sua área de conhecimento. O reconhecimento da obra “Guia de seleção de árvores ornamentais: paisagismo urbano para a Amazônia” com o 3º lugar na categoria Ciências Naturais e Matemáticas do 11º Prêmio ABEU é de grande relevância científica, institucional e simbólica para os autores, para o Museu Paraense Emílio Goeldi (instituição editoral) e para a Amazônia como um todo. A premiação pela ABEU não é apenas um certificado de mérito: é uma chancela institucional estratégica que confere legitimidade nacional à proposta do livro e impulsiona sua função transformadora no cenário da arborização urbana brasileira. Em um momento em que se intensificam os debates sobre cidades resilientes, mudanças climáticas e justiça ambiental, o reconhecimento da ABEU sinaliza que o conhecimento técnico produzido na Amazônia tem papel central na agenda ambiental do país.

Fonte: Confea

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